Desde que a Senhora Prefeita de Natal tomou a decisão de vetar a construção de “espigões” nas proximidades do “Morro do Careca”, uma enxurrada de matérias sobre a questão foram veiculadas nos mass media do Estado. Opinantes de todos os naipes infestaram as páginas dos jornais e de outras mídias. De “filósofos” versando sobre a estética da “paisagem monótona” do Morro do Careca, aos áulicos e acólitos do cortejo empreendedor. São cortesãos e serviçais dedicados e empenhados em ver a cidade alçada aos píncaros do “progresso” e do “desenvolvimento” tão almejados. Aliás, a idéia da paisagem monótona aventada faz-me lembrar dos burros de ciganos.
Quem morou no interior, em décadas anteriores a de 70, deve recordar dos enfeites que adornavam os burros das caravanas de ciganos. Os arreios do animal eram cheios de espelhos, fitas multicoloridas e outros apetrechos. Eram tantos penduricalhos que os burros passavam despercebidos. Por isso, quando alguém ou alguma coisa se apresentava com muitos adornos, se dizia: “tá mais enfeitado do que burro de cigano”. Deseja-se, ardentemente, que a estética do “progresso”, com toda sorte de adereços, multicoloridos e multiformes, como em burros de cigano, adorne a recorrente e “monótona paisagem” que os feitores de paisagens não produziram.
Retomo o mote, pois a peleja não cessou com o ato do poder executivo. Foi dito que o Senhor Secretário, quanto a essa questão, estaria a produzir a regulamentação para esse pedaço de território. Ademais, no próximo ano será discutida a revisão do Plano Diretor. Portanto, esse foi mais um round do conflito estabelecido e perpetuado pelo setor imobiliário, relativo as formas de ocupação do espaço urbano, que teve seu auge em ocasião semelhante a que acontecerá no próximo ano, qual seja: a revisão do sobredito Plano Diretor que aconteceu em 2007. Naquela ocasião teve de tudo. Só para refrescar a memória, lembremo-nos da denúncia de assédio aos vereadores, os quais teriam sido compensados monetariamente para atenderem os interesses nebulosos de imobiliárias, que desencadeou a denominada Operação Impacto, cujo resultado foi a instauração de processos criminais para apurar tais atos de corrupção, teve até ameaças e intimidações a um participante das discussões aqui em Ponta Negra.
Se tal fato já não fosse suficientemente denunciador dos métodos pouco ortodoxos utilizados, para não dizer espúrios, consta da literatura policial-jornalí stica, a partir daquele período, o desbaratamento de máfias d’além mar, associadas a espertos nativos, que faziam lavagem de dinheiro “investindo” no setor imobiliário com generosas ofertas, inflando a especulação imobiliária e as expectativas de ganho fácil. Essas e outras são as peripécias empreendidas por bandos alcunhados pomposamente de investidores e empreendedores.
No presente momento, a estratégia é lamentar a “fuga dos investimentos”, pois não há “segurança jurídica” para os investimentos em empreendimentos imobiliários. Natal tem tudo para se desenvolver e tornar-se uma cidade “moderna”, porém a incerteza cria uma dificuldade para essa finalidade. Quem estaria disposto a investir num lugar assim. É essa a conclusão a que chega o engenheiro Rogério Torres, responsável pela construtora CTE Engenharia e pelo empreendimento Costa Brasilis, em matéria publicada na Tribuna do Norte, dia 09 deste mês, intitulada: “Investidor pensa em desistir de Natal”. Naquela ocasião, o sobredito responsável pela construção do “espigão” declarou que “a insegurança jurídica está inviabilizando Natal”(sic).
Será? Inviabilizada pra quem? Só pra não esquecer o registro, insegurança jurídica é jargão jurídico que está na moda. É como a banha do peixe-boi, serve pra tudo. Basta uma breve pesquisa na internet, bendita internet, para se ver o leque dos discursos sobre insegurança jurídica. Por exemplo, o discurso que provoca insegurança jurídica o fato de juízes decidirem pela revisão de contratos bancários.
Mas o que é um morro para frear o desenvolvimento? Para que resistir ao avanço inelutável do “desenvolvimento”? O engenheiro garante que em nada seu “belo” flat interferirá na paisagem. Mirou-se o morro de vários lugares e aparentemente nada se viu que pudesse impedir sua visão. O problema é que a dita paisagem é constituída pelo célebre Morro do Careca, uma imensa duna fixa que margeia toda a Vila estendendo-se ao mar. A paisagem é o Morro do Careca e não a “careca” do morro.
Uma torre, duas torres, depois outra, muitas outras. Torres de concreto. Em seguida, se produzirão, invariavelmente, placas, letreiros, toda sorte de brilho e luzes. Muitas luzes. Assim, com essas imagens, pode ser visto e proclamado o progresso atingido. Como burros de cigano, a paisagem adornada por tantos adereços concorrentes, se tornará, ela mesma, um adereço na paisagem produzida por construtores de cenários.
Voltando à matéria mencionada, o nosso benfeitor lamenta ainda a sorte dos adquirentes de apartamentos do malogrado empreendimento, que “com sacrifício, vende alguma coisa, um carro, pra poder dar a entrada”. Lamúrias à parte, verifiquemos os fatos. Para um bom observador da cena, alguns detalhes saltam aos olhos. Nos dia 05 de janeiro duas matérias (Novo Jornal, p.10 e Jornal de Hoje, p.5) nos dão esses detalhes. Na primeira, o sobredito investidor informa “que 55 das 60 unidades do prédio de 19 andares haviam sido comercializadas”. Detalhe: 70% dessas unidades haviam sido adquiridas por estrangeiros. O detalhe da segunda é, sobretudo, imagético: a foto do local do empreendimento. O que se vê é o início de uma construção, início do soerguimento de pilares, tisnados pela ação do tempo, com restos de tábuas amontoadas. Apurando o olhar sobre a fotografia, descortina-se a bela e privilegiada vista do Morro do Careca.
A partir desses detalhes e declarações desse homem de negócios, tentemos compreender o imbróglio, começando pela fotografia divulgada. Verifica-se que há muito o local encontra-se abandonado. Quem sabe desde 2006 quando a obra foi vetada. Pois bem, naquele ano, 2006, pediram uma indenização de R$ 4,5 milhões. Ocorre, não se sabe porque cargas d’água, o dito empreendedor afirma que precisa multiplicar esse montante por quatro. Fico pensando: 90% das unidades construídas foram vendidas antes ou depois de cassada a liberação em 2006?
Se foi antes, e naquela ocasião calculava a indenização em 4,5 milhões de reais, qual o critério para a sobrevalorização? Espero que tenha sido antes. Mas se foi depois do empreendimento estar impedido, por decisão da administração municipal, penso que haja implicações legais, pois vender algo mesmo sabendo que não podia cumprir com o contrato é um embuste. Ou será que tinha tanta certeza que tal veto seria derrubado? Por que estaria tão certo? Quem o faria?
Depois, fico pensando quem são esses “pobres” estrangeiros pauperizados, pois somam 70% do total dos compradores, atravessando penosamente o Atlântico, após terem economizado, vendido seus carros e outros bens para adquirir apartamentos no flat que o engenheiro pretendia construir. Para se desfazerem assim dos seus bens, para poder pagar a “entrada”, sonhavam, sem sombras de dúvidas, em “morar” no Brasil. Não em qualquer lugar, mas em Natal, mais precisamente desfrutando a paisagem de Ponta Negra, de um lugar privilegiado, do alto de seus apartamentos. Talvez tenham arranjado um bom emprego por aqui, coisa que os jovens da Vila sonham, lutam e não conseguem, nem com a construção desses empreendimentos.
Será por acaso um novo processo de invasão colonial, para “modernizar” e tirar do “atraso” os nativos da província potiguar? Ou seria somente para passarem férias? Quem sabe seja alguém querendo desfrutar suas economias em lugar um caliente, como alguns que costumeiramente por aqui aportam. Seja como for, o tal do Flat da Vila, tem epíteto apropriado para quem o habitaria: Costa Brasilis. Como diriam os matutos lá do interior de onde vim, eu mesmo matuto igual a eles, sobre os bons propósitos do nosso benfazejo investidor, algo, assim, parecido com a seguinte frase: esse “povo” é desses que suga até dá no osso”.
O problema não se esgota na questão paisagística. Há outras questões implicadas. Como as referentes aos impactos ambientais e sociais; sobre a ocupação do espaço urbano e acerca de modelos de desenvolvimento; do deslocamento de populações pobres das áreas assediadas pela especulação para as áreas periféricas e da privatização do espaço público. Uma coisa é certa: a de nenhuma importância, para essas pessoas, dos moradores da Vila, dos moradores da cidade. Pouco ou nada vale o bem-estar dos cidadãos.
Marcondes Silva
Morador de Ponta Negra
[Fevereiro de 2010]
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