Quem voltar a Natal, sem ter ido à capital do Rio Grande do Norte por pelo menos 7 anos, ficará horrorizado.

Imaginemos que a Ponte Rio-Niterói tivesse sido construída entre os bairros da Urca e Jurujuba, próxima às fortalezas de São João e de Santa Cruz, na barra da Baía de Guanabara. Pois uma aberração parecida foi perpetrada, em Natal, na foz do rio Potenji.

A Ponte de Todos – Newton Navarro, mais conhecida como "Ponte de Poucos", foi aberta ao tráfego em novembro de 2007 e tem 55 metros de altura no vão central. Ela liga o bairro da Redinha, na Zona Norte, ao de Santos Reis, na Zona Leste, onde fica a Fortaleza dos Reis Magos, construída a partir do final do século XVI.

Ponte Newton Navarro, em Natal

Além da desproporção agressiva, chocante para quem conheceu a paisagem sem a ponte, é difícil entender a localização escolhida para a obra, sabendo que pouco rio acima poderia ter cerca de um terço do comprimento e servir a maior número de pessoas. Isso sem mencionar o custo da construção de R$ 200 milhões, e as denúncias de superfaturamento, envolvendo a governadora Wilma de Faria.

Essa não é a única surpresa desagradável para quem volta a Natal depois de alguns anos. Caminhando pelas praias da Via Costeira, uma sucessão de esqueletos de obras abandonadas se impõe e causa péssima impressão, agravada pelo que se vê, à distância, na praia de Ponta Negra – prédios altíssimos aglomerados, as duas torres do Marbello Condominium, com 34 andares, e uma do Complexo Residencial Corais de Ponta Negra, com 43.

Ponta Negra

Ao passar dos anos, mudanças e perdas são inevitáveis. Mas o que foi feito a Natal não parece razoável, nem necessário. A modernização urbana forçada e sem critério, voltada para o turismo predatório, destruiu o encanto da cidade, tornando anacrônico o vestígio de apego local a tradições ligadas à cultura popular. O massacre da especulação imobiliária, e decisões políticas arbitrárias tornaram um tanto patético o evento Agosto da alegria, promovido este mês pelo governo do estado, responsável também pela Ponte de Poucos. A cruel ironia da situação não teria escapado a Deífilo Gurgel, folclorista homenageado este ano, falecido em fevereiro.

Deífilo foi quem redescobriu, em 1979, Chico Antônio, o cantador de cocos que Mário de Andrade conheceu no final de 1928, e ao qual se referiu diversas vezes em sua obra, além de ter descrito em O turista aprendiz os dias de convivência que tiveram no engenho Bom Jardim, do pai do seu amigo Antônio Bento de Araújo Lima. Chico Antônio permanecera 50 anos no anonimato, sem que se soubesse que continuava vivo, fora do restrito âmbito do município onde vivia.

Chico Antonio fotografado por Mario de Andrade

A perda recente de Deífilo veio se somar a outras que,  desde o início da década de 1980, marcaram minhas idas a Natal. O documentário Chico Antônio, o herói com caráter, exibido na semana passada no Agosto da alegria, resultou da inesperada morte do designer e gestor cultural Aloísio Magalhães, em 82. Dias antes, ele nos contara – a Carlos Augusto Calil e a mim – que tivera um encontro com Chico Antônio, em Natal, e recomendara que fosse feita uma gravação em vídeo do cantador.

Dez anos depois, em 1993, o próprio Chico Antônio morreu quando eu estava em João Pessoa, a caminho de Natal, onde haveria uma exibição do documentário à qual ele estaria presente. Teria sido nosso primeiro encontro desde as gravações.

Com tais antecedentes, desta vez viajei temeroso de novas perdas. De caráter pessoal, não houve. O que constatei, porém, nas poucas horas que passei por lá, foi o desaparecimento da própria Natal, conforme a conheci, em 1974, filmando a Fortaleza dos Reis Magos, com Murilo Salles. Cidade à qual voltei várias vezes a trabalho, nas décadas seguintes, inclusive para gravar, com José Tadeu, uma sequência para o documentário 35 – O assalto ao poder, dedicada à fugaz tomada do poder, em novembro de 1935.

Fortaleza dos Reis Magos

De volta ao Rio, lembrei imediatamente da Ponte de Poucos, ao saber segunda-feira (20/8) da morte do diretor britânico Tony Scott. Reafirmando sua vocação para o grande espetáculo, Scott se atirou da Ponte Vincent Thomas que liga San Pedro à ilha Terminal, cruzando o porto de Los Angeles. A ponte tem cerca de 1800 metros de extensão, e 111 metros de altura no vão central – o mesmo comprimento da Ponte de Poucos e o dobro da altura.

Ponte Vincent Thomas, Los Angeles

Pontes como essas são conhecidas por atraírem suicidas. E a de Poucos, mesmo tendo no vão central metade da altura da Vincent Thomas, não foge à regra. Uma rápida busca no Google informa que, em 2009, um fotógrafo "perdeu a foto, mas salvou uma vida" ao evitar que uma mulher se atirasse do alto do vão central. Júnior Santos, da Tribuna do Norte, estava passando de carro "quando percebeu que uma mulher estava prestes a pular", vestida de "short curto e um bustiê, acenando e dando adeus, dizendo palavras de despedida, enquanto entre uma parada e outra olhava para baixo, como conferindo a altura e escolhendo o local mais alto para pular da ponte". Quando Santos a pegou pelo braço ela teria dito que "a deixasse pular e ainda tirasse a foto".

De lá para cá, como seria de se esperar, outras tentativas ocorreram, a mais recente em março deste ano.

Tony Scott foi mais eficiente. Segundo o site http://www.tmz.com, seu último espetáculo foi gravado por múltiplas câmeras e os registros estão sendo negociados. Uma das gravações mostraria Scott agachado, preparando-se para pular. Ao verem um homem passando por cima de uma cerca na ponte Vincent Thomas, várias pessoas teriam começado a gravar com seus celulares e continuado gravando quando ele pulou, mergulhando para a morte. Uma câmera de vigilância também teria registrado a cena.

As notícias sobre possíveis causas que teriam levado Scott ao suicídio são contraditórias. Segundo o Guardian, a falta de motivo aparente deixou os comentadores confusos. "Ele parecia ter tudo: sucesso, dinheiro, respeito, uma mulher e dois filhos pequenos".

A Ponte de Poucos é o símbolo perfeito da agressão a Natal ocorrida nas últimas décadas – agressão gratuita à paisagem, à história da cidade, aos seus moradores, e aos visitantes acidentais. Segundo o jornal Tribuna do Norte, não trouxe os frutos esperados e ainda se tornou um dos pontos críticos do trânsito da cidade.